sábado, 5 de dezembro de 2009

Intervenção de Alfredo Maia



O Sindicato dos Jornalistas portugueses tem a honra de receber-vos na sua Casa, na Casa dos jornalistas e num importante centro cívico que tem desempenhado, ao longo dos tempos, um papel decisivo na defesa dos direitos dos cidadãos – à liberdade de expressão, informação livre, ao jornalismo eticamente responsável.

Foi assim antes do 25 de Abril, especialmente quando se juntou a outros sindicatos para defender a livre organização dos trabalhadores, e quando os seus membros souberam e tiveram a coragem de enfrentar um regime fascista disfarçado de primavera de esperanças que lhes exigia um código deontológico.

Sem liberdade de expressão, sem liberdade de imprensa, os jornalistas não aceitam submeter-se a qualquer código deontológico, pela razão muito simples, muito clara e muito firme de que não há responsabilidade sem liberdade – disseram então os jornalistas portugueses.

Mal a alvorada de Abril acabou de resplandecer nos horizontes de um país novo, este Sindicato estava já na primeira linha da colaboração na criação de leis e de normas que atribuem a esta profissão e a este corpo profissional um conjunto coerente de direitos e de deveres – a Lei de Imprensa, sem dúvida, e depois o Estatuto do Jornalista, instrumentos jurídicos ainda hoje pouco habituais no mundo – mas especialmente a própria Constituição da República Portuguesa.

Com efeito, se não erro, o Jornalismo é a única profissão cujas garantias fundamentais – direito de acesso à informação, sigilo profissional, direito de participação na orientação dos órgãos de informação, etc. – merecem protecção constitucional em Portugal.

Não é um privilégio; é um fardo muito pesado, especialmente nos tempos que correm, enfrentando uma grave ofensiva por parte das empresas, com o beneplácito, a mais descarada cumplicidade e mesmo a participação activa do Governo e da maioria parlamentar e a complacência do Presidente da República, como aconteceu com a última revisão do Estatuto do Jornalista e com o fracasso na aprovação de uma lei contra a concentração da propriedade dos meios de informação.

A concentração da propriedade dos meios de informação, que está na origem de um clube restrito de grupos económicos que controla todas as grandes publicações, as televisões e as principais rádios não representa apenas o domínio da capacidade de recolher, tratar e difundir informação e um enorme poder de intervenção no espaço público.

Tal concentração representa igualmente o controlo do mercado do trabalho dos jornalistas e outros trabalhadores, estabelecendo e impondo as regras sobre quem entra, quem permanece e quem sai das empresas, que é como quem diz da profissão.

A pretexto da crise, com o argumento das inexoráveis alterações tecnológicas, com a maximização do lucro através da exploração de sinergias, muitas redacções continuam a ser emagrecidas e o desemprego entre os jornalistas portugueses atinge níveis nunca vistos. Apesar da reduzida dimensão do mercado português, contam-se às centenas de vítimas por ano. A maioria não volta à profissão.

Simultaneamente, centenas de jovens a iniciar a profissão são contratados em regimes da maior precariedade, a qual se prolonga por muitos anos, condicionando a sua liberdade e a sua consciência profissional, além de reduzi-los à condição de reserva de mão-de-obra barata e facilmente descartável.
Jornalistas com vínculos contratuais precários ou jornalistas sob o risco permanente de serem abrangidos por uma reestruturação, que é o sinistro caminho para o desemprego, enfrentam enormes desafios à consciência profissional, ao dever ético de resistir a uma mercantilização da informação, ao imperativo deontológico do rigor e da protecção dos interesses dos cidadãos, à obrigação solidária de defender os direitos laborais e profissionais.

É neste contexto e nestas condições que se esboçam as possibilidades de internacionalização de empresas e grupos de média, nomeadamente no mundo lusófono, e, especialmente, se difunde a doutrina e a prática da redução dos jornalistas à condição de simples produtores de conteúdos destituídos de direitos.

Em nome do pretexto tecnológico ou invocando a socrossanta legitimação do progresso das comunicações e da comunicação global, de escala planetária e velocidade instantânea, os patrões dos media – em Portugal como no resto do mundo – encetaram uma ofensiva sem precedentes contra os direitos de autor dos jornalistas e de outros criadores, rapinando criações alheias como despojos de um combate do qual têm saído vencedores devido à superioridade de meios e à subserviência do poder político ao poder económico.

A internacionalização, ou pior, a globalização de uma ideologia mercantilista que afronta os jornalistas e o jornalismo, a sua ética e a consciência dos seus deveres para com os seus pares e para com os cidadãos, constitui hoje um desafio extraordinário para os jornalistas e as suas organizações, apelando à consciencialização em massa e à mobilização de forças, nas redacções, nas organizações profissionais, nos países, à escala internacional.

É urgente organizar e globalizar a resistência. É decisiva a criação, manutenção e expansão de organizações internacionais fortes, coesas, activas e influentes, que dêem força às organizações filiadas, projectem os seus problemas e as suas lutas para fora das suas fronteiras e lhes emprestem a voz junto dos poderes e organismos internacionais.

É neste contexto que surge enfim esta federação, que é de jornalistas de língua portuguesa e reflecte as realidades e os projectos de uma comunidade concreta, perspectivando uma efectiva cooperação, desinteressada e fraterna, assente na complexa história comum das pátrias onde nos foi dado nascer e no património linguístico partilhado por 225 milhões de falantes do Português, seja em cada um dos oito países onde é a língua oficial, seja nas comunidades que as respectivas diásporas espalharam por todos os cantos do mundo, até nos confins mais recônditos do Planeta.

A federação não se esgota na sua constituição formal nem na realização mais ou menos regular de reuniões e congressos. É urgente o seu funcionamento em rede, partilhando informações e constituindo um suporte permanente de auxílio mútuo, constituindo um interlocutor decisivo com instâncias internacionais e conferindo escala a lutas com objectivos que hoje já não se restringem a cada um dos nossos países, como é o caso dos direitos de autor.

Mas o papel da federação não se resume aos problemas, interesses e anseios dos jornalistas e das respectivas organizações em cada país, nem se resume a objectivos meramente corporativos. É que, em última análise, não visa senão um fim: ajudar os jornalistas a melhor servirem os cidadãos no seu direito à informação, no direito de conhecer mais mundo, no direito de saber o que pensam e o que propõem outros cidadãos noutras latitudes.

Os nossos países encerram um imenso e extraordinariamente rico património de pensamento, de criação, de génio, de debate, de realização, de esforço individual e colectivo – da literatura e das artes à economia; da tradição popular às mais requintadas e grandiosas produções artísticas; do improvisado engenho rural à mais sofisticada ciência; das singelas realizações locais aos grandes desígnios nacionais; da mais pequena divergência ou conflito aos grandes debates nacionais; dos problemas das comunidades isoladas aos salões da grande diplomacia.

E, todavia, sabemos muito pouco uns dos outros, ou não sabemos o suficiente. Não apenas porque as realidades, os problemas e as realizações nos nossos países não constam, com a constância devida, das agendas (das pautas...) dos nossos sistemas mediáticos, mas também porque se mantêm constrangimentos incompreensíveis.

Não deixa de ser incompreensível, por exemplo, que os cidadãos da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa continuem a carecer de visto para as deslocações entre países. Desde logo, parece estranha a contradição entre a semântica e a política, justamente porque “Comunidade” nos conduz à ideia generosa da partilha de algo que deve ser comum – o espaço lusófono, por exemplo.

Mas é ainda mais incompressível é que essa restrição abranja os jornalistas.

Não é que os jornalistas reivindiquem um estatuto especial. Mas se é necessário começar por algum lado, por algum grupo profissional, não é excessivo propor, reivindicar mesmo, que se comece pelos jornalistas.
Os jornalistas são os olhos e os ouvidos do pulsar do mundo. São muitas vezes os primeiros embaixadores da reconciliação entre povos; são instrumentos de difusão de informações vitais à compreensão dos outros; são vectores de paz e de cooperação.

Por isso, os jornalistas devem gozar de livre deslocação entre estados, especialmente entre estados que se agrupam designadamente para fins de cooperação, pois não faz sentido nem há qualquer razão para aceitar que a realização de uma reportagem, seja a que pretexto for, continue hoje dependente da concessão de vistos que podem demorar prazos de tal modo excessivos que se tornam inúteis quando – e se – são concedidos.

Senhor Secretário Executivo da CPLP, permita-me que aproveite a presença e V. Exa. neste acto público de anúncio da novel federação de jornalistas para transmitir-lhe o apelo do Sindicato dos Jornalistas portugueses para que, na medida das suas possibilidade e no quadro do seu mandato, sensibilize os governos dos países da comunidade lusófona para a necessidade do levantamento dos constrangimentos à circulação livre e expedita de jornalistas no seu espaço.

Pelo nossa parte, faremos também tudo o que estiver ao nosso alcance para que tal objectivo seja alcançado.

Disse.

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